domingo, 10 de outubro de 2010

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Livro A Cabana!!Prefácio,primeiro capítulo e segundo capítulo!!

Prefácio
Quem não duvidaria ao ouvir um homem afirmar que passou
um fim de semana inteiro com Deus e, ainda mais, em uma cabana?
Principalmente naquela cabana.
Conheço Mack há pouco mais de 20 anos, desde o dia em que nós
dois fomos à casa de um vizinho para ajudá-lo a embalar feno para suas
poucas vacas. A partir de então a gente se encontra compartilhando um
café – ou, para mim, um chá tailandês superquente, com soja. Nossas
conversas nos dão um prazer profundo e são sempre salpicadas de
muito riso e de vez em quando de uma ou duas lágrimas. Francamente,
quanto mais velhos ficamos, mais a gente se dá bem, se é que você
me entende.
O nome completo dele é Mackenzie Allen Phillips, mas a maioria das
pessoas o chama de Allen. É uma tradição de família: todos os homens
têm o primeiro nome igual, mas são conhecidos pelo nome do meio,
provavelmente para evitar a ostentação do I, II e III ou Júnior e Sênior.
Assim, ele, o avô, o pai e agora o filho mais velho têm o nome de
Mackenzie, mas só Nan, a mulher dele, e os amigos íntimos o chamam
de Mack.
Ele nasceu em uma fazenda do Meio-Oeste, numa família irlandesaamericana
de mãos calejadas e regras rigorosas. Ainda que aparentemente
religioso e exageradamente rígido, seu pai bebia muito, sobretudo
quando a chuva não vinha ou quando vinha cedo demais, e quase
sempre entre uma coisa e outra. Mack nunca fala muito sobre o pai,
mas quando o menciona a emoção abandona seu rosto, como se fosse
uma maré vazante, deixando seus olhos sombrios e sem vida. Pelo
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pouco que Mack me contou, sei que seu pai não era o tipo de alcoólatra
que cai num sono rápido e feliz, e sim um bêbado perverso que
batia na mulher e depois pedia perdão a Deus.
A coisa chegou a tal ponto que, aos 13 anos e com certa relutância,
Mack abriu o coração para um líder da igreja durante um encontro de
jovens. Dominado pelo clima do momento,Mack confessou chorando
que nunca fizera nada para ajudar a mãe nas várias vezes em que testemunhara
o pai bêbado lhe dar uma surra até deixá-la inconsciente. O
que Mack não pensou foi que seu confessor freqüentava a mesma igreja
que seu pai. Quando chegou em casa, o pai o esperava na varanda e
a mãe e as irmãs não estavam.Mais tarde,Mack ficou sabendo que elas
tinham sido mandadas à casa da tia May para que o pai pudesse ter
liberdade para dar ao filho rebelde uma lição inesquecível.Durante quase
dois dias, amarrado ao grande carvalho nos fundos da casa, ele foi castigado
com um cinto e com versículos da Bíblia todas as vezes que o pai
acordava de sua bebedeira e largava a garrafa.
Duas semanas depois, quando enfim conseguiu ficar em pé, Mack
simplesmente se levantou e foi embora de casa. Mas antes de partir
colocou veneno de rato em cada garrafa de bebida que conseguiu
encontrar na fazenda. Depois desenterrou de perto da latrina externa a
pequena lata onde guardava todos os seus tesouros: uma foto da família
em que o pai estava meio afastado, uma figurinha de beisebol do Luke
Easter de 1950, uma garrafinha com mais ou menos 30ml de Ma Griffe
(o único perfume que sua mãe havia usado), um carretel de linha e
duas agulhas, um pequeno jato F-86 da Força Aérea americana em
metal fundido e todas as economias de sua vida: 15 dólares e 13 centavos.
Esgueirou-se pela sala e enfiou um bilhete debaixo do travesseiro
da mãe, enquanto o pai roncava, curtindo mais um porre. O bilhete
dizia simplesmente: “Um dia espero que você possa me perdoar.” Jurou
que nunca mais olharia para trás e não olhou – durante um longo
tempo.
Treze anos é muito pouco, porém Mack não tinha muitas opções e se
adaptou rapidamente. Ele não fala muito sobre os anos seguintes. A
maior parte foi passada fora do país, trabalhando pelo mundo, man-
dando dinheiro para os avós, que o repassavam à mãe. Acho que num
desses países distantes chegou a pegar em armas e participar de algum
conflito terrível; desde que o conheço, ele odeia a guerra com um fervor
sinistro. Seja lá o que for que tenha acontecido, aos 20 e poucos
anos foi parar num seminário na Austrália. Quando Mack se fartou de
teologia e filosofia, retornou aos Estados Unidos, fez as pazes com a
mãe e as irmãs e se mudou para o Oregon, onde conheceu Nannete A.
Samuelson e se casou com ela.
Neste mundo de faladores, Mack é pensador e fazedor. Não diz
muita coisa, a não ser que alguém pergunte, o que pouca gente faz.
Quando fala, dá a impressão de ser uma espécie de alienígena que vê
a paisagem das idéias e experiências humanas de modo diferente de
todas as outras pessoas.
O que acontece é que as coisas que ele diz causam um certo desconforto
em um mundo onde a maioria das pessoas prefere escutar o que
está acostumada a ouvir, o que freqüentemente não é grande coisa. Os
que o conhecem geralmente gostam muito de Mack, desde que ele
mantenha guardados seus pensamentos. Porque as coisas que Mack diz
nem sempre deixam as pessoas muito satisfeitas com elas mesmas.
Uma vez Mack me contou que quando era jovem costumava se
abrir com mais liberdade, mas admitiu que a maior parte dessas conversas
era um mecanismo de sobrevivência para encobrir suas feridas.
Freqüentemente acabava derramando a dor sobre quem estivesse por
perto. Disse que tinha prazer em apontar as falhas das pessoas e humilhá-
las para manter seu sentimento de falso poder e controle. Nada
muito elogiável.
Enquanto escrevo estas palavras, reflito sobre o Mack que sempre
conheci: um sujeito bastante comum e certamente sem nada de especial,
a não ser para os que o conhecem de verdade. Vai fazer 56 anos e
não chama a atenção, está ligeiramente acima do peso, é meio careca,
baixo e branco – uma descrição que serve para muitos homens dessas
redondezas. Você provavelmente não o notaria numa multidão nem
se sentiria incomodado sentado ao seu lado enquanto ele cochila no
trem que o leva à cidade para a reunião semanal de vendas. Faz a maior
parte de seu trabalho num pequeno escritório em sua casa na Wildcat
Road.Vende alguma engenhoca de alta tecnologia que eu não pretendo
entender: trecos eletrônicos que de algum modo fazem tudo andar
mais depressa, como se a vida já não fosse rápida demais.
Você só percebe como Mack é inteligente quando, por acaso, escuta
um diálogo dele com um especialista. Já vivi algumas situações dessas
quando a língua falada mal parecia com a nossa e eu me via lutando
para captar os conceitos que jorravam como um rio de jóias despencando
de uma cachoeira. Ele consegue falar com inteligência sobre
quase tudo e, apesar da força de suas convicções, Mack tem um modo
gentil e respeitoso que deixa você manter as suas.
Seus assuntos prediletos são Deus, a Criação e por que as pessoas
acreditam em determinadas coisas. Seus olhos se iluminam e seu sorriso
repuxa os cantos dos lábios para cima. De repente, como se fosse
um garotinho, o cansaço se dissolve e ele rejuvenesce, praticamente
incapaz de se conter. Mas, ao mesmo tempo, Mack não é muito religioso.
Parece ter uma relação de amor e ódio com a religião e talvez até
com Deus, que ele imagina como um ser mal-humorado, distante e
altivo. Pequenas gotas de sarcasmo escorrem às vezes pelas rachaduras
de seu reservatório, como dardos cortantes cheios de veneno. Embora
algumas vezes nós dois vamos juntos à mesma igreja, dá para ver que
ele não se sente muito à vontade lá.
Mack está casado com Nan há pouco mais de 33 anos – na maior
parte do tempo, eles são felizes. Diz que ela salvou sua vida e pagou um
preço alto por isso. Por algum motivo que não dá para compreender,
Nan parece amá-lo agora mais do que nunca, apesar de eu ter a sensação
de que ele a magoou de algum modo terrível nos primeiros anos.
Acho que, assim como a maior parte das nossas feridas tem origem em
nossos relacionamentos, o mesmo acontece com as curas, e sei que
quem olha de fora não percebe essa bênção.
De qualquer modo, Mack se casou. Nan é a argamassa que mantém
juntos os ladrilhos de sua família. Enquanto Mack lutou num mundo
com muitos tons de cinza, o dela é principalmente preto e branco.
O bom senso é tão natural para Nan que ela nem consegue perceber o
dom que isso representa. Ter uma família a impediu de realizar seu
sonho de ser médica, mas ela se destacou como enfermeira e obteve um
reconhecimento considerável em seu trabalho com pacientes terminais
com câncer. Enquanto o relacionamento de Mack com Deus é amplo,
o de Nan é profundo.
Esse casal contraditório teve cinco filhos de beleza incomum. Mack
gosta de dizer que todos pegaram a beleza dele, “... porque Nan ainda
conserva a dela”. Dois dos três meninos já saíram de casa: Jon, casado
há pouco, trabalha como vendedor de uma empresa local, e Tyler,
recém-formado na faculdade, está fazendo mestrado. Josh e uma das
duas garotas, Katherine (Kate), cursaram a escola comunitária local. E
a que chegou por último é Melissa – ou Missy, como gostávamos de
chamá-la. Ela... bem, você vai conhecer melhor alguns dos filhos de
Mack ao longo deste livro.
Os últimos anos foram... como é que posso dizer... notavelmente
peculiares. Mack mudou: agora está ainda mais diferente e especial.
Durante todos os nossos anos de convívio ele sempre foi bastante gentil
e amável, mas desde a estada no hospital há três anos ficou... bem,
melhor ainda. Tornou-se uma daquelas raras pessoas que estão totalmente
à vontade dentro da própria pele. E eu também me sinto mais à
vontade perto dele do que de qualquer outra pessoa. Cada vez que nos
separamos, tenho a sensação de ter tido a melhor conversa da minha
vida, mesmo que eu tenha falado mais. E, a respeito de Deus,Mack não
é mais simplesmente amplo. Ficou muito profundo. Mas o mergulho
custou caro.
Os dias de hoje são muito diferentes de há sete ou oito anos, quando
a Grande Tristeza entrou em sua vida e ele quase parou de falar.Mais ou
menos nessa época, e por quase dois anos, nossos encontros foram
interrompidos, como se por um acordo mútuo não verbalizado. Eu só
via Mack de vez em quando na mercearia ou, mais raramente ainda, na
igreja. E, embora em geral trocássemos um abraço educado, não falávamos
de muita coisa importante. Para ele era até difícil me encarar.
Talvez não quisesse entrar numa conversa capaz de arrancar a casca de
seu coração ferido.
Porém tudo isso mudou depois de um acidente feio com... Mas lá
vou eu outra vez botando o carro na frente dos bois.Vamos chegar lá no
devido tempo. Basta dizer que estes últimos anos parecem ter devolvido
a vida de Mack e tirado o fardo da Grande Tristeza. O que aconteceu
há três anos mudou totalmente a melodia de sua vida e é uma canção
que mal posso esperar para tocar.
Apesar de se comunicar bastante bem verbalmente,Mack não se sente
seguro sobre sua capacidade de escrever – algo que ele sabe que me
apaixona. Por isso, perguntou se eu escreveria esta história, a história
dele “para as crianças e para a Nan”. Queria uma narrativa que o ajudasse
a expressar para eles a profundidade de seu amor e que os
ajudasse a entender o que havia se passado em seu mundo interior.
Você conhece o lugar: é onde você está sozinho – e talvez com Deus, se
acredita Nele. É claro que Deus pode estar lá, mesmo que você não
acredite. Isso seria bem o jeito de Deus. Não é à toa que ele é chamado
de O Grande Intrometido.
A história que você vai ler é resultado de uma luta minha e do Mack
para, durante muitos meses, colocar em palavras o que ele viveu. Tem
um lado um pouco... digamos,muito fantástico. Não vou julgar se algumas
partes são verdadeiras ou não. Prefiro dizer que,mesmo que algumas
coisas não possam ser cientificamente provadas, talvez sejam verdadeiras.
Mas preciso afirmar honestamente que fazer parte desta história
me afetou de modo profundo, desvendando detalhes meus que eu desconhecia.
Confesso que desejo desesperadamente que tudo o que Mack
me contou seja verdade. Na maioria das vezes eu me sinto próximo
dele, mas em outras – quando o mundo visível de concreto e computadores
parece ser o real – perco o contato e tenho dúvidas.
Algumas observações finais.Mack gostaria que eu lhe transmitisse o
seguinte recado: “Se você odiar esta história, desculpe, ela não foi escrita
para você.” Mas eu quero acrescentar: afinal, talvez tenha sido. O que
você vai ler é o máximo que Mack consegue recordar daquilo que aconteceu.
Esta é a história dele, não a minha. Por isso, nas poucas vezes em
que apareço, vou me referir a mim mesmo na terceira pessoa – e do
ponto de vista de Mack.
Às vezes a memória pode ser uma companheira enganosa, em especial
com relação ao acidente, e eu não ficarei surpreso se, apesar de nosso
esforço conjunto para contar a história com exatidão, alguns fatos e
lembranças aparecerem distorcidos nestas páginas. Não é intencional.
Garanto que as conversas e eventos foram registrados do modo mais
fiel possível, de acordo com as lembranças de Mack. Portanto, por
favor, tente não se aborrecer com ele. Como você verá, essas coisas não
são fáceis de contar.

Uma confluência de caminhos (primeiro capítulo)
Duas estradas se bifurcaram no meio da minha vida,
Ouvi um sábio dizer.
Peguei a estrada menos usada.
E isso fez toda a diferença cada noite e cada dia.
Larry Norman (pedindo desculpas a Robert Frost)
Março desatou uma torrente de chuvas depois de um inverno de
secura anormal. Uma frente fria desceu do Canadá e foi contida por
rajadas de vento que rugiam pelo desfiladeiro, vindas do Leste do Oregon.
Ainda que a primavera certamente estivesse logo ali, depois da esquina,
o deus do inverno não iria abandonar sem luta seu domínio conquistado
com dificuldade. Havia um cobertor de neve recente nas Cascades,
e agora a chuva congelava ao bater no chão do lado de fora da casa.
Motivo suficiente para Mack se enroscar com um livro e uma sidra
quente, aconchegando-se no calor do fogo que estalava na lareira.
Mas, em vez disso, ele passou a maior parte da manhã no computador.
Sentado confortavelmente no escritório de casa, usando calças de
pijama e uma camiseta, ele deu telefonemas de vendas. Parava com
freqüência, ouvindo o som da chuva cristalina tilintar na janela e
vendo o acúmulo vagaroso mas constante do gelo lá fora. Estava se
tornando inexoravelmente prisioneiro do gelo em sua própria casa –
e com muito prazer.
Há algo agradável nas tempestades que interrompem a rotina. A neve
ou a chuva gélida nos liberam subitamente das expectativas, das exigências
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de resultados e da tirania dos compromissos e dos horários.Ao contrário
da doença, esta é uma experiência mais coletiva do que individual.
Quase podemos ouvir um suspiro de alívio erguer-se em uníssono na
cidade próxima e no campo, onde a natureza interveio para dar uma
folga aos exaustos seres humanos. Todos os afetados pela tempestade
são unidos por uma desculpa mútua. De súbito e inesperadamente o
coração fica um pouco mais leve. Não serão necessárias desculpas por
não comparecer a algum compromisso. Todos entendem e compartilham
a mesma justificativa, e a retirada súbita de qualquer pressão
alegra a alma.
É claro que as tempestades também interrompem negócios, e, embora
umas poucas empresas tenham um ganho extra, outras perdem dinheiro
– o que significa que existem os que não sentem júbilo quando
tudo fecha temporariamente. Mas é impossível culpar alguém pela
perda de produção ou por não conseguir chegar ao escritório. Mesmo
que a situação só dure um ou dois dias, de algum modo cada pessoa se
sente dona do seu mundo simplesmente porque aquelas gotinhas de
água congelam ao bater no chão.
Até as atividades comuns se tornam extraordinárias. Ações rotineiras
se transformam em aventuras e freqüentemente são vivenciadas com
maior clareza.No fim da tarde,Mack se encheu de agasalhos e saiu para
lutar com os quase 100 metros da comprida entrada de veículos que vai
até a caixa de correio. O gelo havia convertido magicamente essa tarefa
simples do dia-a-dia numa batalha contra os elementos: levantou o
punho em contestação à força bruta da natureza e, num ato de desafio,
riu na cara dela. O fato de que ninguém notaria nem se incomodaria
com seu gesto pouco importava para ele – só o pensamento o fez rir
por dentro.
As pelotas de chuva gelada ardiam no rosto e nas mãos enquanto ele
subia e descia com cuidado as pequenas ondulações do caminho.Mack
se divertia pensando que parecia um marinheiro bêbado indo com
cuidado para o próximo boteco. Quando você enfrenta a força de uma
tempestade de gelo, não caminha exatamente com ousadia, demonstrando
uma confiança incontida. Mack teve de se levantar duas vezes
antes de finalmente conseguir abraçar a caixa de correio como se fosse
um amigo desaparecido há muito.
Parou para apreciar a beleza de um mundo engolfado em cristal.
Tudo refletia luz e colaborava para o brilho crescente do fim de tarde.
As árvores no campo do vizinho tinham-se coberto com mantos
translúcidos, e agora cada uma parecia única ao seu olhar. Era um
mundo radiante e, por um momento, seu esplendor luzidio quase
retirou, ainda que por apenas alguns segundos, a Grande Tristeza dos
ombros de Mack.
Demorou quase um minuto para arrancar o gelo que havia lacrado a
tampa da caixa de correio. A recompensa por seus esforços foi um
único envelope onde havia apenas seu primeiro nome escrito à máquina
do lado de fora; sem selo, sem carimbo e sem remetente. Curioso,
ele rasgou a borda do envelope, tarefa que não foi fácil, pois os dedos
começavam a se enrijecer de frio. Dando as costas para o vento que
lhe tirava o fôlego, finalmente conseguiu arrancar do ninho um pequeno
retângulo de papel sem dobra. A mensagem datilografada dizia
simplesmente:
Mackenzie
Já faz um tempo. Senti sua falta.
Estarei na cabana no fim de semana que vem, se você quiser
me encontrar.
Papai
Mack se enrijeceu enquanto uma onda de náusea percorria seu
corpo e, com igual rapidez, se transmutava em ira. Esforçava-se para
pensar o mínimo possível na cabana e, mesmo quando ela lhe vinha à
mente, seus pensamentos não eram agradáveis nem bons. Se aquilo era
uma piada de mau gosto, a pessoa realmente havia se superado. E assinar
“Papai” só tornava a coisa ainda mais horrenda.
– Idiota – resmungou, pensando em Tony, o carteiro: um italiano exa-
geradamente amigável, com grande coração mas pouco tato. Por que ele
entregaria um envelope tão ridículo? Nem estava selado. Mack enfiou
com raiva o envelope e o bilhete no bolso do casaco e virou-se para
começar a deslizar na direção de casa. Os sopros fortes do vento, que
a princípio haviam diminuído de intensidade, agora o empurravam,
encurtando o tempo necessário para atravessar a minigeleira que
engrossava sob seus pés.
Estava se saindo bem, obrigado, até chegar à entrada de veículos, que
se inclinava um pouco para baixo e à esquerda. Sem qualquer esforço
ou intenção, começou a aumentar a velocidade, deslizando com sapatos
que tinham praticamente tanta firmeza quanto um pato pousando
num lago gelado. Com os braços balançando loucamente na esperança
de, não sabia como, manter o equilíbrio, Mack se viu adernando de
encontro à única árvore de tamanho substancial que ladeava a entrada
de veículos – a única cujos galhos mais baixos ele havia cortado uns
poucos meses antes. Agora ela se erguia ansiosa para abraçá-lo, seminua
e aparentemente desejosa de uma pequena retribuição. Numa
fração de segundo, ele escolheu o caminho da covardia e tentou despencar
no chão, permitindo que os pés escorregassem – o que eles de
qualquer modo fariam. Melhor ter a bunda dolorida do que arrancar
lascas do rosto.
Mas a descarga de adrenalina o fez compensar exageradamente, e em
câmara lenta Mack viu os pés se erguerem à sua frente, como se puxados
para cima por alguma armadilha da selva. Bateu com força,
primeiro com a nuca, e escorregou até um monte na base da árvore brilhosa,
que pareceu se erguer acima dele com uma expressão de presunção
e nojo, além de uma certa decepção.
O mundo pareceu ficar escuro por um instante. Ele permaneceu ali
deitado, tonto e olhando o céu, franzindo os olhos enquanto a precipitação
gelada esfriava rapidamente seu rosto vermelho. Durante uma
pausa ligeira, tudo pareceu estranhamente quente e pacífico, com sua
cólera momentaneamente nocauteada pelo impacto.
– Agora, quem é o idiota? – murmurou consigo mesmo, esperando
que ninguém estivesse olhando.
O frio se entranhava rapidamente pelo casaco e pelo suéter, e Mack
soube que a chuva gelada que estava ao mesmo tempo se derretendo e
se congelando embaixo dele iria logo se tornar um enorme desconforto.
Gemendo e sentindo-se muito velho, rolou apoiando-se nas mãos e
nos joelhos. Foi então que viu a marca de um vermelho forte traçando
sua jornada desde o ponto de impacto até o destino final. Como se gerado
pela súbita percepção do ferimento, um martelar surdo começou
a subir pela nuca. Instintivamente ele procurou a fonte das batidas de
tambor e trouxe de volta a mão ensangüentada.
Com o gelo áspero e o cascalho afiado cortando as mãos e os joelhos,
Mack meio engatinhou, meio escorregou, até conseguir chegar a uma
parte plana da entrada de veículos. Com um esforço considerável, finalmente
pôde ficar de pé e avançar cautelosamente, centímetro a centímetro,
em direção à casa, humilhado pelos poderes do gelo e da gravidade.
Assim que entrou,Mack se livrou metodicamente e do melhor modo
que pôde das camadas de roupa de frio, com os dedos meio congelados
reagindo com quase tanta destreza quanto se fossem porretes enormes
na ponta dos braços. Decidiu largar aquela bagunça molhada e manchada
de sangue ali mesmo na entrada, onde a deixara cair, e avançou
dolorosamente até o banheiro para examinar os ferimentos. Não existia
dúvida de que o caminho gelado havia vencido. Do talho na nuca
escorria sangue ao redor de algumas pedrinhas ainda encravadas no
couro cabeludo. Como havia temido, um galo significativo tinha se formado,
emergindo como uma baleia-corcunda rompendo as ondas de
seu cabelo ralo.
Enquanto tentava ver a nuca com um pequeno espelho de mão que
refletia uma imagem invertida do espelho do banheiro,Mack achou difícil
fazer um curativo. Depois de uma curta frustração, desistiu, incapaz
de obrigar as mãos a irem na direção certa e sem saber qual dos dois
espelhos mentia para ele. Tateando com cuidado ao redor do talho encharcado,
conseguiu tirar os pedaços maiores de cascalho, até que a dor
ficou forte demais para continuar. Pegou um pouco de pomada de
primeiros socorros e tapou o ferimento do melhor modo que pôde. Em
seguida amarrou uma toalha de rosto na nuca usando um pouco de
gaze que encontrou numa gaveta do banheiro. Olhando-se no espelho,
pensou que se parecia um pouco com um marinheiro rude saído do
romance Moby Dick. Isso o fez rir, depois se encolher.
Teria de esperar até que Nan chegasse em casa para receber qualquer
atendimento médico verdadeiro, uma das muitas vantagens de ser casado
com uma enfermeira. De qualquer modo, sabia que quanto pior
fosse a aparência, mais solidariedade iria receber. Se prestarmos bastante
atenção, sempre conseguiremos descobrir alguma compensação
no sofrimento. Engoliu dois analgésicos para diminuir a dor e mancou
até a porta da frente.
Nem por um instante Mack se esqueceu do bilhete. Remexendo na
pilha de roupas molhadas e ensangüentadas, finalmente o encontrou
no bolso do casaco. Olhou, voltou para o escritório, achou o número
da agência de correio e ligou. Como esperava, Annie, a matronal chefe
do correio e guardiã dos segredos da população local, atendeu.
– Oi, por acaso o Tony está aí?
– Oi, Mack, é você? Reconheci sua voz. – Claro que reconheceu.
– Desculpe, mas o Tony ainda não voltou. Na verdade, acabo de falar
com ele pelo rádio. Está na metade da Wildcat, nem chegou à sua casa
ainda. O que você quer que eu diga a ele, se conseguir voltar vivo?
– Na verdade você já respondeu à minha pergunta.
Houve uma pausa do outro lado.
– O que há de errado,Mack? Ainda está fumando muito bagulho, ou
só faz isso nas manhãs de domingo para conseguir suportar o culto na
igreja? – Ela começou a rir, encantada com o brilho de seu próprio
senso de humor.
– Bom, Annie, você sabe que eu não fumo bagulho. Nunca fumei e
nem quero. – Claro que Annie sabia disso, mas Mack não podia se
arriscar. Não seria a primeira vez em que o senso de humor de Annie
se transformaria numa boa história que logo se tornaria um “fato”. Ele
podia ver seu nome sendo acrescentado à corrente de orações da igreja.
– Tudo bem, eu falo com o Tony outra hora, não é importante.
– Então está certo, e fique dentro de casa, que é mais seguro. Você
sabe, um cara velho como você pode perder o senso de equilíbrio com
o passar dos anos. Do jeito que as coisas andam, talvez Tony não consiga
chegar à sua casa.
– Obrigado, Annie. Tentarei lembrar do seu conselho. Falo com você
mais tarde. Tchau. – Sua cabeça latejava cada vez mais, pequenos martelos
de forja batendo no ritmo do coração. “Estranho”, pensou, “quem
ousaria colocar algo assim na nossa caixa de correio?” Os analgésicos
ainda não haviam surtido o efeito desejado, mas eram suficientes para
embotar o início de preocupação que ele estava sentindo, e de repente
Mack ficou muito cansado. Pousou a cabeça na mesa e pensou que
havia acabado de cair no sono quando o telefone o acordou com
um susto.
– Ah... alô?
– Oi, amor. Parece que você estava dormindo. – Ele sentiu na voz de
Nan uma animação incomum, mesmo percebendo a tristeza encoberta
que espreitava logo abaixo da superfície de cada conversa.Mack ligou a
luminária da mesa e olhou o relógio, surpreso ao constatar que dormira
por cerca de duas horas.
– Ah, desculpe. Acho que cochilei um pouco.
– É, você parece meio grogue. Tudo bem?
– Tudo. – Mesmo estando quase escuro lá fora, Mack podia ver que
a tempestade não havia amainado. Tinha até depositado mais uns
5 centímetros de gelo. Os galhos das árvores pendiam baixos e ele sabia
que alguns acabariam se partindo com o peso, principalmente se o
vento aumentasse. – Tive um pequeno entrevero na entrada de veículos
quando fui pegar a correspondência.Mas, fora isso, tudo bem. E você?
– Ainda estou na casa da Arlene e acho que eu e as crianças vamos
passar a noite aqui. É sempre bom para a Kate estar com a família... parece
que isso restaura um pouco o seu equilíbrio. – Arlene era a irmã de
Nan, que morava do outro lado do rio, em Washington. – De qualquer
modo, está escorregadio demais para sair. Espero que melhore de manhã.
Queria ter chegado em casa antes de o tempo ficar tão ruim, mas o que
se há de fazer? – Houve uma pausa. – Como está tudo por aí?
– Bem, está absolutamente, espantosamente lindo e muitíssimo mais
seguro de olhar do que de andar, acredite. Eu certamente não quero que
você tente chegar aqui nessa situação. Nada se mexe. Acho que nem o
Tony conseguiu trazer a correspondência.
– Achei que você já tinha pegado a correspondência.
– Não, achei que o Tony tinha passado e fui pegar. E – Mack hesitou,
olhando o bilhete sobre a mesa – não havia nenhuma correspondência.
Liguei para Annie e ela disse que o Tony provavelmente não ia conseguir
subir a ladeira. De qualquer modo – ele mudou rapidamente de
assunto para evitar mais perguntas –, como está a Kate?
Houve uma pausa e depois um longo suspiro. Quando Nan falou,
sua voz saiu num sussurro, e Mack percebeu que ela estava tapando o
bocal do outro lado.
– Mack, eu gostaria de saber. Por mais que eu tente, não consigo. É
como se eu falasse com uma pedra. Quando tem gente da família por
perto, ela parece sair um pouco da casca, mas depois some de novo.
Simplesmente não sei o que fazer. Rezei e rezei para que Papai nos auxiliasse
a encontrar um modo de ajudá-la, mas... – Nan parou de novo –
parece que ele não está ouvindo.
Era assim. Papai era o nome com que Nan se referia a Deus e expressava
o deleite que lhe provocava sua amizade íntima com ele.
– Querida, tenho certeza de que Deus sabe o que está fazendo. Tudo
vai dar certo. – Essas palavras não lhe trouxeram conforto, mas ele
esperava que pudessem aliviar a preocupação que sentia na voz dela.
– Eu sei – Nan suspirou. – Só gostaria que ele andasse mais depressa.
– Eu também – foi tudo o que Mack conseguiu dizer. – Bom, você e
as crianças fiquem aí, onde é seguro. Dê lembranças à Arlene e ao
Jimmy e agradeça a eles por mim. Espero ver você amanhã.
– Eu também. Se cuide e me ligue se precisar de alguma coisa. Tchau.
Mack sentou-se e olhou o bilhete. Era confuso e doloroso tentar evitar
a cacofonia de emoções perturbadoras e de imagens sombrias que
nublava sua mente – um milhão de pensamentos viajando a um milhão
de quilômetros por hora. Por fim desistiu, dobrou o bilhete, enfiou-o
numa pequena lata que ficava sobre a mesa e apagou a luz.
Conseguiu encontrar algo para aquecer no microondas, depois pegou
alguns cobertores e travesseiros e foi para a sala de estar. Ao olhar rapida-
mente para o relógio, viu que o programa de Bill Moyer tinha acabado
de começar; era seu programa predileto, que ele tentava não perder
nunca. Moyer era uma das pouquíssimas pessoas que Mack adoraria
conhecer: um homem brilhante e franco, capaz de exprimir com clareza
incomum uma compaixão intensa pelas pessoas e pela verdade.
Quase sem pensar e sem afastar os olhos da televisão,Mack estendeu
a mão para a mesinha de canto, pegou um porta-retrato com a imagem
de uma menininha e o apertou contra o peito. Com a outra mão puxou
os cobertores até o queixo e se aninhou mais fundo no sofá.
Logo o som de roncos suaves encheu o ar, enquanto o aparelho exibia
um estudante no Zimbábue, que fora espancado por falar contra o
governo. Mas Mack já havia saído da sala para lutar com seus sonhos.
Talvez essa noite não houvesse pesadelos, só visões, quem sabe, de gelo,
árvores e gravidade.

A escuridão se aproxima(segundo capítulo)
Nada nos deixa tão solitários quanto nossos segredos.
– Paul Tournier
Durante a noite um vento sudoeste soprou pelo vale de Villamette,
libertando a paisagem do aperto gélido da tempestade. Em menos
de 24 horas instalou-se um calor de início de verão. Mack dormiu
até tarde, um daqueles sonos sem sonhos que parecem durar apenas
um instante.
Quando finalmente se arrastou do sofá, surpreendeu-se ao descobrir
que as loucuras do gelo haviam se dissolvido tão depressa, mas deliciouse
ao ver Nan e as crianças aparecerem menos de uma hora depois.
Primeiro veio a bronca previsível por ele não ter posto as roupas sujas
de sangue na lavanderia. Em seguida, uma quantidade adequada de
exclamações que acompanharam o exame que ela fez no ferimento da
cabeça. O cuidado agradou imensamente a Mack e logo Nan o havia
limpado, remendado e alimentado. Mas não houve menção ao bilhete
sempre presente em sua mente. Ele ainda não sabia o que pensar a
respeito e não queria envolver Nan em algum tipo de piada cruel.
As pequenas distrações, como a tempestade de gelo, eram uma trégua
bem-vinda que afastava por instantes a presença terrível de sua companheira
constante: a Grande Tristeza, como ele a chamava. Pouco
depois do verão em que Missy desaparecera, a Grande Tristeza havia
pousado nos ombros de Mack como uma capa invisível, mas quase
palpável. O peso daquela presença embotava seus olhos e curvava seus
ombros. Até os esforços para afastá-la eram exaustivos, como se os braços
estivessem costurados nas dobras escuras do desespero que agora,
de algum modo, tinha se tornado parte dele. Comia, trabalhava, amava,
sonhava e brincava sempre usando essa vestimenta, como se fosse um
roupão de chumbo. Andava com dificuldade pela melancolia tenebrosa
que sugava a cor de tudo.
Às vezes ele podia sentir a Grande Tristeza se apertando lentamente
ao redor do peito e do coração, como os anéis esmagadores de uma
jibóia, espremendo líquido dos seus olhos até ele achar que não existia
mais nenhuma gota. Em outras ocasiões sonhava que seus pés estavam
presos em lama pegajosa, enquanto tinha rápidos vislumbres de Missy
correndo pelo caminho que descia pela floresta à frente dele, o vestido
vermelho de algodão leve enfeitado pelas flores silvestres que piscavam
entre as árvores. Ela não fazia qualquer idéia da sombra escura que a
seguia. Ainda que Mack tentasse freneticamente gritar, nenhum som
saía e ele sempre chegava tarde demais e impotente demais para salvála.
Sentava-se empertigado na cama, o suor pingando do corpo torturado,
enquanto ondas de náusea, culpa e arrependimento rolavam
sobre ele como um maremoto surreal.
A história do desaparecimento de Missy infelizmente não é como
outras que a gente costuma ouvir. Tudo aconteceu no fim de semana
do Dia do Trabalho, o último brado de alegria do verão antes de outro
ano de escola e rotinas de outono. Mack decidiu corajosamente levar
as três crianças menores para um último acampamento no lago
Walowa, no Nordeste do Oregon. Nan já estava inscrita num curso de
reciclagem em Seattle, um dos dois garotos mais velhos havia retornado
à faculdade e o outro estava trabalhando como monitor num
acampamento de verão.Mas Mack confiava na própria capacidade de
combinar corretamente conhecimentos de sobrevivência ao ar livre e
habilidades maternas. Afinal, Nan era uma boa professora e ele, um
aluno aplicado.
O sentimento de aventura e a euforia do acampamento tomaram
conta de todos, e a casa virou um redemoinho de atividades. Num
determinado ponto da confusão, Mack decidiu que precisava de uma
trégua e se acomodou na cadeira do papai depois de expulsar Judas, o
gato da família. Já ia ligar a TV quando Missy entrou correndo, segurando
sua caixinha de plástico transparente.
– Posso levar minha coleção de insetos para acampar com a gente? –
perguntou.
– Quer levar seus bichos? – grunhiu Mack, sem prestar muita
atenção.
– Pai, eles não são bichos. São insetos. Olha, tenho um monte aqui.
Relutante, Mack deu atenção à filha, que, vendo-o concentrado,
começou a explicar o conteúdo do seu “baú” do tesouro.
– Olha, tem dois gafanhotos. E olha aquela folha, é a minha lagarta,
e em algum lugar por aí... Ali! Está vendo minha joaninha? E tenho
uma mosca em algum lugar e umas formigas.
Enquanto ela fazia o inventário da coleção,Mack se esforçou ao máximo
para demonstrar que estava atento, balançando a cabeça.
– Então – terminou Missy. – Você deixa eu levar?
– Claro que sim, querida. Talvez a gente possa soltá-los na floresta
quando estivermos lá.
– Não pode, não! – veio uma voz da cozinha. – Missy, você tem de
deixar a coleção em casa, querida. Acredite, eles estão mais seguros
aqui. – Nan esticou a cabeça pela quina da parede e franziu a testa
amorosamente para Mack, enquanto ele encolhia os ombros.
– Eu tentei, querida – sussurrou ele para Missy.
– Grrr – rosnou Missy. E, sabendo que a batalha estava perdida,
pegou a caixa e saiu.
Na noite de quinta-feira a van estava lotada e a carreta-barraca de
reboque presa, com luzes e freios testados. Na sexta de manhã, depois
de um último sermão de Nan para os filhos sobre segurança, obediência,
escovar os dentes de manhã, não pegar gatos com listras brancas
nas costas e todo tipo de outras coisas, todos saíram: Nan para o norte
e Mack e os três mosqueteiros para o leste. O plano era voltar na noite
de terça-feira, véspera do primeiro dia de aula.
Mack e os filhos pararam na cachoeira Multnomah para comprar
um livro de colorir e lápis de cor para Missy e duas máquinas fotográficas
descartáveis e à prova d’água para Kate e Josh. Depois decidiram
subir a curta distância da trilha até a ponte diante da cachoeira.Antigamente
havia um caminho rodeando o poço principal e entrando numa
caverna rasa atrás da queda-d’água, mas infelizmente ele tinha sido
bloqueado pelas autoridades do parque por causa da erosão. Missy
adorava o lugar e implorou ao pai para contar a lenda da bela jovem
índia, filha de um chefe da tribo Multnomah. Foi preciso um pouco de
insistência, mas por fim Mack cedeu e recontou a história enquanto
olhavam para a névoa que envolvia a cachoeira.
A história falava de uma princesa, a única filha que restava ao pai
idoso. O chefe adorava a filha e escolheu com cuidado um marido
para ela: um jovem chefe guerreiro da tribo Clatsop que a amava. As
duas tribos se juntaram para as comemorações do casamento. Mas,
antes do começo da festa, uma doença terrível começou a matar
muitos homens.
Os anciãos e os chefes se reuniram para discutir o que poderiam fazer
contra a doença devastadora que dizimava rapidamente seus guerreiros.
O curandeiro mais velho contou que seu pai, perto de morrer, já bem
idoso, havia previsto uma doença terrível que mataria seus homens,
uma doença que só poderia ser vencida se a filha de um chefe, pura e
inocente, oferecesse de boa vontade a vida pelo seu povo. Para realizar
a profecia, ela deveria subir voluntariamente num penhasco acima do
Grande Rio e pular para a morte nas rochas abaixo.
Uma dúzia de jovens, todas filhas dos vários chefes, foram trazidas
diante do Conselho. Depois de demorados debates, os anciãos decidiram
que não poderiam pedir um sacrifício tão precioso, sobretudo
porque não sabiam se a lenda era verdadeira.
Mas a doença continuou se espalhando implacável entre os homens,
e finalmente o jovem chefe guerreiro, o futuro esposo, caiu doente. A
princesa, que o amava muito, soube no fundo do coração que algo precisava
ser feito e, depois de lhe dar um leve beijo na testa, afastou-se.
Demorou toda a noite e todo o dia seguinte para chegar ao local indicado
na lenda, um penhasco altíssimo acima do Grande Rio e das terras
mais além.Depois de rezar e se entregar ao Grande Espírito, ela cumpriu
a profecia sem hesitar, pulando para a morte nas rochas abaixo.
Nas aldeias, na manhã seguinte, os doentes se levantaram saudáveis
e fortes. Houve grande júbilo e comemoração, até que o jovem guerreiro
descobriu que sua adorada noiva havia sumido. À medida que a
percepção do que acontecera se espalhava rapidamente entre o povo,
muitos empreenderam a jornada até o lugar onde sabiam que iriam
encontrá-la. Enquanto se reuniam em silêncio ao redor do corpo destroçado
na base do penhasco, seu pai, tomado pelo sofrimento, gritou para o
Grande Espírito, pedindo que o sacrifício dela fosse lembrado para
sempre. Nesse momento, do lugar de onde ela havia pulado começou a
jorrar água, transformando-se numa névoa fina que caía aos pés deles,
lentamente formando um lago maravilhoso.
Normalmente,Missy adorava a história. A narrativa possuía todos os
elementos de um verdadeiro conto de redenção, não muito diferente da
história de Jesus que ela conhecia tão bem. Falava de um pai que amava
a filha única e de um sacrifício anunciado por um profeta. Por causa do
amor, a jovem escolheu dar sua vida para salvar o noivo e as tribos da
morte certa.
Mas, dessa vez, Missy ficou quieta quando a história terminou.
Virou-se imediatamente e dirigiu-se para a van, como se dissesse: “Tudo
bem, não tenho mais nada para fazer aqui. Vamos indo.”
Deram uma parada rápida para um lanche junto ao rio Hood, depois
voltaram para a auto-estrada que iria levá-los pelos últimos 115 quilômetros
até a cidade de Joseph. O lago e o local de acampamento ficavam
poucos quilômetros depois de Joseph. Quando chegaram, arrumaram
tudo – não exatamente como Nan teria preferido, mas do jeito que lhes
pareceu melhor.
Naquele fim de tarde, sentado entre as três crianças que riam assistindo
a um dos maiores espetáculos da natureza, o coração de Mack foi subitamente
inundado por uma alegria inesperada. Um pôr-do-sol de cores e
padrões brilhantes destacava as poucas nuvens que haviam esperado nas
coxias para se tornarem os atores centrais nessa apresentação única. Ele
era um homem rico, pensou, em todos os sentidos que mais importavam.
Quando acabaram de limpar os restos do jantar, a noite havia caído.
Os cervos tinham ido para o lugar onde dormem. Seu turno foi substituído
pelos encrenqueiros noturnos: guaxinins, esquilos e tâmias, que
perambulavam em bandos procurando qualquer recipiente ligeiramente
aberto. Os Phillips sabiam disso por experiência própria. A primeira
noite que tinham passado nesses locais de acampamento lhes custara
quatro dúzias de barras de cereal, uma caixa de chocolate e todos os
biscoitos de creme de amendoim.
Antes que ficasse muito tarde, os quatro deram uma pequena caminhada
para longe das fogueiras e das lanternas do acampamento, até
um lugar escuro e quieto onde pudessem se deitar e olhar maravilhados
a Via-Láctea, espantosa e intensa sem a poluição das luzes da cidade.
Mack era capaz de ficar horas deitado olhando aquela vastidão. Sentiase
incrivelmente pequeno, mas em paz. De todos os lugares em que a
presença de Deus se fazia sentir, era ali, rodeado pela natureza e sob as
estrelas, um dos mais tocantes. Quase podia ouvir o hino de adoração
que os astros faziam ao Criador, e em seu coração relutante ele participava
do melhor modo possível.
Então voltaram ao acampamento e, depois de várias viagens aos banheiros,
Mack enfiou os três na segurança de seus sacos de dormir.
Rezou brevemente com Josh antes de ir até onde Kate e Missy estavam
esperando. Quando chegou a vez de Missy rezar, ela quis conversar com
o pai.
– Papai, por que ela teve de morrer?
Mack demorou um momento para descobrir do que Missy estava
falando. Percebeu subitamente que a princesa índia devia estar na
cabeça da menina desde cedo, quando ele contara a história.
– Querida, ela não teve de morrer. Ela escolheu morrer para salvar seu
povo. Eles estavam doentes e ela queria que se curassem.
Houve um silêncio e Mack soube que outra pergunta estava se formando
no escuro.
– Isso aconteceu mesmo? – A pergunta agora vinha de Kate, obviamente
interessada na conversa.
Mack pensou antes de falar.
– Não sei, Kate. É uma lenda, e às vezes as lendas são histórias que
ensinam uma lição.
– Então não aconteceu de verdade? – perguntou Missy.
– Pode ter acontecido, querida. Às vezes as lendas nascem de histórias
verdadeiras, coisas que aconteceram de fato.
De novo silêncio, e depois:
– Então a morte de Jesus é uma lenda?
Mack podia ouvir as engrenagens girando na mente de Kate.
– Não, querida, a história de Jesus é verdadeira. E sabe de uma coisa?
Acho que a história da princesa índia provavelmente também é.
Mack esperou enquanto suas filhas processavam os pensamentos.
Missy foi a próxima a perguntar:
– O Grande Espírito é outro nome para Deus? Você sabe, o pai
de Jesus?
Mack sorriu no escuro. Obviamente as orações noturnas de Nan
estavam surtindo efeito.
– Acho que sim. É um bom nome para Deus, porque ele é um espírito
e é grande.
– Então por que ele é tão mau?
Ah, ali estava a pergunta que viera crescendo na cabecinha da filha.
– Como assim,Missy?
– Bom, o Grande Espírito fez a princesa pular do penhasco e fez Jesus
morrer numa cruz. Isso parece muito mau.
Mack ficou travado. Não sabia como responder.Com seis anos e meio,
Missy estava fazendo perguntas com as quais pessoas sábias haviam
lutado durante séculos.
– Querida, Jesus não achava que o pai dele era mau.Achava que o pai
era cheio de amor e que o amava muito. O pai dele não o fez morrer.
Jesus escolheu morrer porque ele e o pai amavam muito você, eu e todas
as pessoas. Ele nos salvou da doença, como a princesa.
Agora veio o silêncio mais longo e Mack começou a imaginar que a
menina teria caído no sono. Quando ia se inclinar para lhes dar um
beijo, uma vozinha com um tremor perceptível rompeu a quietude.
– Papai?
– Sim, querida?
– Algum dia eu vou ter de pular de um penhasco?
O coração de Mack doeu quando ele entendeu a verdadeira questão.
Abraçou a menininha e a apertou. Com a voz um pouco mais rouca do
que o usual, respondeu gentilmente:
– Não, querida. Nunca vou pedir para você pular de um penhasco,
nunca, nunca, jamais.
– Então Deus vai me pedir para pular de um penhasco?
– Não,Missy. Ele nunca pediria que você fizesse uma coisa dessas.
Ela se aninhou mais fundo em seus braços.
– Está bem! Me dá um abraço apertado. Boa noite, papai. Eu te amo.
– E apagou, caindo num sono profundo embalado por sonhos bons
e doces.
Depois de alguns minutos, Mack a colocou suavemente no saco
de dormir.
– Você está bem, Kate? – sussurrou enquanto lhe dava um beijo.
– Estou – veio a resposta murmurada. – Pai?
– O que é, querida?
– A Missy faz perguntas boas, não é?
– Com certeza. É uma menininha especial. Você também é, só que
não é mais tão pequenininha. Agora durma, temos um grande dia pela
frente. Lindos sonhos, querida.
– Você também, pai. Te amo demais!
– Te amo também, de todo o coração. Boa noite.
Mack fechou o zíper do reboque ao sair, assoou o nariz e enxugou as
lágrimas que desciam pelo rosto. Fez uma oração silenciosa de agradecimento
a Deus e foi coar um pouco de café.

6 comentários:

  1. eeu li , e ameei a cabana , recomendo *-*
    beeijos
    sepuder de uma passadinha no meu blog S2
    beijos S2

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  2. Olá, obrigada pela dica, seu blog está lindoo
    Bjs,
    Aline

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  3. Eu li esse livro, é muuito bom mesmo (: concerteza recomendo!

    A poderia votar no MY MUNDO na enquete desse blog: http://abostaquadrada.blogspot.com/

    Serei muito grato (: mymundo.tk

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  4. Oi meu nome é vanessa amei este blog e já li este livro super triste :( Segui meu blog???


    www.iluvcandybars.blogspot.com

    chau flor bjs vanessa

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  5. Muito legal eu estava pensando mesmo em ler esse livro :) segui la meu blog http://blogfemininomundo.blogspot.com.br/ beiijos

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  6. Oi baby , as dicas dos livros são otimas ! estou até pensando em comprar um desses ! e ler ! amei ;*
    Mega kiss ;* seguindo segue de volta ?

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